Capítulo XIV, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.
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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.
TRANSCRIÇÃO
—
XIV
Ao outro dia, depois do almoço, eu e Jacinto montámos a cavalo para um grande passeio até à Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando todos no jardim a escolher uma bela rosa chá para a botoeira do meu Príncipe, a tia Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça, a caridade e a doçura da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:
— Oh! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas à Virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um desapontamento tremendo!
E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava aquela manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela, no meu quarto, e lhe chamara uma lavradeirona. Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datava do seu tempo de viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra. Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia, — e a alma que nela se formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.
A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera, e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, oferecia uma doçura luminosa, fina, fresca, em que era doce, como diz o velho Eurípides ou o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar, sem pressa ou cuidados. A estrada não tinha sombras, mas o sol descia muito de leve, e roçava com uma carícia quase alada. O vale por baixo parecia a Jacinto (que nunca ali passara) uma pintura da Escola Francesa do século XVIII, tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras ligeiras. Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável. E não sei que plantazinhas silvestres e escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono.
— Que delicioso dia! — murmurou Jacinto. — Este caminho para a Flor da Malva é o caminho do Céu… Oh Zé Fernandes, de que é este cheirinho tão doce, tão bom…
Eu sorri, com certo pensamento:
— Não sei… É talvez já o cheiro do Céu!
Depois, parando o cavalo, apontei com o chicote para o vale:
— Olha, acolá, onde está aquela fila de olmos, e há o riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os pêssegos mais deliciosos de Portugal… Hei-de pedir à prima Joaninha que te mande um cesto de pêssegos. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma coisa de extraceleste. Também lhe hei-de pedir que te mande o doce.
Ele ria:
— Será explorar de mais a prima Joaninha.
E eu (porquê?) recordei e atirei ao meu Príncipe estes dois versos de uma balada cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procópio:
Manda-lhe um servo dizendo:
«Bem hajas dona formosa!»
E que lhe entregue um anel
E com um anel uma rosa.
Jacinto riu alegremente:
— Oh! Zé Fernandes, seria excessivo, logo, por causa de meia dúzia de pêssegos, e de um boião de doce.
Assim ríamos, quando apareceu, à volta da estrada, o longo muro da quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José de Sandofim. E imediatamente piquei para o largo, para a taverna do Torto, por causa daquele vinhinho branco, que sempre, quando por ali a levo, a minha alma me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:
— Oh! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois do almoço, vais beber vinho branco?
— É um costumezinho antigo… Aqui à taverninha do Torto… Um decilitrinho… A almazinha assim mo pede.
E parámos, eu gritei pelo Manuel, que apareceu, rebolando na sua grossa pança, sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.
— Dois copos, Torto amigo. Que aqui este cavalheiro também aprecia.
Depois de um pálido protesto, o meu Príncipe também tomou o seu copo, mirou o límpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvaziou o seu copo, com delícia, e um estalinho de alto apreço.
— Delicioso vinho!… Hei-de querer deste vinho em Tormes… É perfeito.
— Hem? Fresquinho, leve, aromático, alegrador, todo alma!… Encha lá outra vez os copos, Torto amigo. Este cavalheiro aqui é o sr. D. Jacinto, o fidalgo de Tormes.
Então, de trás da umbreira da taverna, uma grande voz bradou, cavamente, solenemente:
— Bendito seja o Pai dos Pobres!
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra… Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. E mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
— Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía, cabeludo e quase negro, de uma manga muito curta.
— A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo, murmurando:
— Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:
— Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei a face para ele, mais em confidência:
— Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei D. Sebastião voltara?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:
— Talvez voltasse, talvez não voltasse… Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa… Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros… Em ruim corpo se esconde bom senhor!
E como ele findara num murmúrio, eu, atirando um olhar a Jacinto, para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos de vidente, insisti:
— Mas, ó tio João, você realmente, em sua consciência, pensa que el-rei D. Sebastião não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que se enrugara numa desconfiança:
— Essas coisas são muito antigas. E não calham bem aqui à porta do Torto. O vinho era bom, e Vossa Senhoria tem pressa, meu menino! A flor da Flor da Malva lá tem o paizinho doente… Mas o mal já vai pela serra abaixo com a inchação às costas. Dá gosto ver quem dá gosto aos tristes. Por cima de Tormes há uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia está lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para que seguíssemos. E já passávamos o cruzeiro, quando o seu brado ardente de novo ressoou, com cava solenidade:
— Bendito seja o Pai dos Pobres!
Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as aclamações de um povo. E Jacinto pasmava de que ainda houvesse no reino um sebastianista.
— Todos o somos ainda em Portugal, Jacinto amigo! Na Serra ou na Cidade cada um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia é uma forma de sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro, espreito, a ver se chega o meu. Ou antes a minha, porque eu espero uma D. Sebastiana… E tu, felizardo?
— Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes… Sou o último Jacinto, Jacinto ponto final… Que casa é aquela com os dois torreões?
— A Flor da Malva.
Jacinto tirou o relógio:
— São três horas. Gastámos hora e meia… Mas foi um belo passeio, e instrutivo. É lindo este sítio.
Sobre um outeirinho, afastada da estrada por arvoredo, que um muro cerrava, e dominando, a Flor da Malva voltava para oriente e para o Sol a sua longa fachada com os dois torreões quadrados, onde as janelas, de varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de ferro, ladeado por dois bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde um imenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as suas fortes raízes um pequeno esperava segurando um burro pela arreata.
— Está por aí o Manuel da Porta?
— Ainda agora subiu pela alameda.
— Bem, empurra lá o portão.
E subimos, por uma curta avenida de velhas árvores, até outro terreiro, com um alpendre, uma casa de moços, toda coberta de heras, e uma casota de cão, donde saltou, com um rumor de corrente arrastada, um molosso, o «Tritão», que eu logo sosseguei, reconhecendo o seu velho amigo Zé Fernandes. E o Manuel da Porta correu da fonte, onde enchia um grande balde, para segurar os nossos cavalos.
— Como está o tio Adrião?
Surdo, o excelente Manuel sorriu, deleitado:
— E então Vossa Excelência, bem? A sr.ª D. Joaninha ainda agora andava no laranjal com o pequeno da Josefa.
Seguimos por ruazinhas bem areadas, orladas de alfazema e buxo alto, enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele pequenito da Josefa era um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e o seu cuidado.
— Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem aí pela freguesia uma verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas e presentes, e ajudar as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes trata as tosses. Nunca a encontro sem uma criancinha ao colo… Agora anda na paixão deste Josezinho.
Mas quando chegámos ao laranjal, à beira da larga rua da quinta que levava ao tanque, debalde procurei, e me embrenhei, e até gritei: — Eh, prima Joaninha!…
— Talvez esteja lá para baixo, para o tanque…
Descemos a rua, ladeada de velhas árvores, que a cobriam com as densas ramas cruzadas. Uma fresca, límpida água de rega corria e luzia num caneiro de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda tinham uma frescura de Verão. E o pequeno campo, que se avistava para além, rebrilhava com uma doçura, toda amarelo e branco, dos malmequeres e botões-de-ouro.
O tanque, redondo, fora esvaziado para se lavar, e agora de novo o repuxo o ia enchendo de uma água muito clara, ainda baixa, onde os peixes vermelhos se agitavam na alegria de recuperarem o seu pequeno oceano. Sobre um dos bancos de pedra que circundavam o tanque, pousava um cesto cheio de dálias cortadas. E um moço, que sobre uma escada podava as camélias, vira a sr.ª D. Joana seguir para o lado da parreira.
Marchámos para a parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas mulheres, longe, ensaboavam num lavadouro, na sombra de grandes faias. Gritei: — Eh lá? Vocês viram por aqui a sr.ª D. Joana? — Uma das moças esganiçou a voz, que se perdeu no vasto ar luminoso e doce.
— Bem: vamos a casa! Não podemos farejar assim, toda a tarde.
— É uma bela quinta — murmurava o meu Príncipe, encantado.
— Magnífica! E bem tratada… O tio Adrião tem um feitor excelente… Não é lá o teu Melchior. Observa, aprende, lavrador! Olha aquele cebolinho!
Passámos pela horta, uma horta ajardinada, como a sonhara o meu Príncipe, com os seus talhões debruados de alfazema, e madressilva enroscada nos pilares de pedra, que faziam ruazinhas frescas toldadas de parra densa. E demos volta à capela, onde crescia aos dois lados da porta uma roseira chá, com uma rosa única, muito aberta, e uma moita de baunilha, onde Jacinto apanhou um raminho para cheirar. Depois entrámos no terraço em frente da casa, com a sua balaustrada de pedra, toda enrodilhada de jasmineiros amarelos. A porta envidraçada estava aberta: e subimos pela escadaria de pedra, no imenso silêncio em que toda a Flor da Malva repousava, até à antecâmara, de altos tectos apainelados, com longos bancos de pau, onde desmaiavam na sua velha pintura as complicadas armas dos Cerqueiras. Empurrei a porta de uma outra sala, que tinha as janelas da varanda abertas, cada uma com a gaiola de um canário.
— É curioso! — exclamou Jacinto. — Parece o meu Presépio… E as minhas cadeiras.
E com efeito. Sobre uma cómoda antiga, com bronzes antigos, pousava um Presépio, semelhante ao da livraria de Jacinto. E as cadeiras de couro lavrado tinham, como as que ele descobrira no sótão, umas armas sob um chapéu de cardeal.
— Oh senhores! — exclamei. — Não haverá um criado?
Bati as mãos, fortemente. E o mesmo doce silêncio permaneceu, muito largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da quinta, apenas cortado pelo saltitar dos canários nos poleiros das gaiolas.
— É o Palácio da Bela no Bosque Adormecida! — murmurava Jacinto, quase indignado. — Dá um berro!
— Não, caramba! Vou lá dentro!
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabelos, — lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de Setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou, em Maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira já de rosas.
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